«(…) O.K. No hablo espagñol. Soa-me a coisa estranha. A eliminação do pronome, como acontece no russo, creio, sempre me pareceu bastante primitivo – ou será sinal de o eu não é assim tão importante? (…)», é do homem que através de pormenores sintáticos questiona sobre a importância do ser individual que pretendo falar de, escrever sobre.
Henry Miller, na minha opinião, um mestre na forma de pensar e (do pouco que conheço) na forma de escrever.
Iniciei-me nestas “andanças” de HVM de forma menos corrente, parece-me. Ao contrário de primeiro conhecer a obra, procurando as páginas de livros que se constituem como referência no mundo literário, conheci primeiro o autor, o homem. Através do que escrevia, entre 1931 e 1946, nas Cartas a Anais Nin. Cartas essas reunidas com a ajuda da própria, e que em 1965 deram lugar a um «excitante auto-retrato do escritor e artista Henry Miller.» (in introdução de Gunther Stuhlmann, 1964) que estou a ler de forma tão apaixonada que, mesmo antes de acabar a leitura, sinto vontade de partilhar convosco a minha opinião sobre este Ser especial e umas quantas passagens que – “criminosamente” – vou sublinhando numa edição de 1984.
Henry Milher, tinha perfeita noção da suas capacidades e consciência do que as mesmas implicavam na sua época. Em suma, era a sua forma particular de escrever que lhe dava gozo e portanto não aceitava escrever de forma socialmente aceite só porque isso lhe permitia, mais facilmente, uma publicação. «(…) Reflectindo a sós comigo que a primeira impressão é sempre a que está certa, que fiz sempre asneira quando renunciava ao meu juízo inicial, quando mudava de ideia depois de as ter aprofundado… porque o que elas me revelam à primeira vista nada contém daquilo que eu depois lhes sobreponho. (…)» Era um autor, cuja a ideia de o seu legado não ser compreendido, em toda a sua plenitude, o atormentava.
Um artista, seja qual for a sua criação, necessita da aprovação ou da reprovação do seu público. Raramente um artista cria só a pensar em si. Mesmo quando, supostamente, o faz sabe que a sua mensagem terá em algum lugar e em algum momento, um receptor que tecerá sobre a mesma as suas opiniões e objecções. Não seria, então, a aceitação que o preocupava, mas sim a possibilidade de, por causa da censura, a sua obra não chegar a quem se sentisse disponível para a ler. «Eu vejo a grande diferença entre o desejo verdadeiro e a mera apetência ou entre o exercício da vontade e a disciplina que impele ao cumprimento do dever. Sei perfeitamente que o crescimento vem somente através do desejo e do reconhecimento da relação entre verdade e ser (…) tornamo-nos finalmente conscientes: os tiros cegos no escuro são demasiado ruidosos para serem ignorados. Toda e qualquer realidade profunda deste género constitui um real avanço, uma real consolidação na até agora cega conquista da verdade. De repente, sente-se que, para quem estiver atento, a verdade está sempre a falar em nós. Tornamo-nos então terrivelmente calmos e contidos. Deixamos de tentar fazer mais do que nos é possível fazer. Mas não fazemos também menos do que podemos.»
Um homem, que dito de forma simplista, acreditava na vida e na sua essência mais pura,na amizade, na astrologia, no sonho e na sexualidade, «(…) Tive uns sonhos homossexuais muito estranhos… (…) Mulheres com alhos-porros a brotar das partes. É mau? (…)». Um homem que, nas suas palavras, era visto pelos outros como um «(…) tipo singular, extravagante, bizarro original, dizem eles. Ouvem-me como quem ouve um homem vindo de Marte. (…)». Um homem crédulo e esperançoso «(…) Sinto que há qualquer coisa boa aqui à minha espera. E se assim não for, irei pelo menos aprender o significado da solidão sobre a qual tantas vezes tenho falado. Pode ser uma espécie de ensaio para uma solidão maior que depois virá. De qualquer das maneiras, neste momento sinto-me rico. Tenho a sensação de que vão ser precisos muitos anos de solidão para se escutar toda esta riqueza (é possível que venha a provar-se o contrário), de que me vou enriquecer ainda mais, de modo insuspeito. E, a partir do momento em que posso escrever a alguém, não me considero separado do mundo. E ainda que não escreva, mesmo sentado, a sonhar, estou sempre em comunicação com todos.», um homem sábio e incessante na procura da mestria «A perfeição nasce das raízes. Quando alguém não começa pelo começo, terá, mais tarde ou mais cedo, de regressar ao começo e de recomeçar. É esta a lei e não se lhe pode escapar. (…)».
Estou a poucas páginas do fim e não posso dizer, para já, que dou por concluído este post. Posso, contudo, dizer-vos que estou absolutamente apaixonada pelo pensar, pela escrita deste homem e desejosa de ler o Trópico de Cancêr cujo o autor escreve sobre o mesmo assim: «(…) hoje num acto de heroísmos, rasguei em pedaços o trabalho de meses. Estou a edificar um novo cosmos. Rasguei a Brochura para poder escrever o livro do século. transferi o isto para o aquilo e de novo para o isto. (…) Continuo a passar o Trópico de Cancêr a pente fino. Um bocado frouxo aqui e ali, mas na generalidade bom. Se alguém por acaso escrevesse um prefácio ao livro, deveria explicar que ele foi escrito em voo, tive, enquanto o escrevi, vinte e cinco moradas. Nota-se uma constante mudança de morada, de ambiente, etc. Como num pesadelo. E é isto que o torna bom. Excitante caleidoscópio. Aqui e ali um bocado sentimental, sentencioso até. Mas vou tentar mondar tudo isso (…) este, se não publicado agora, nunca mais o será. Perderia actualidade. Tudo tem o seu momento próprio, e o deste livro é agora (…)» e sobre a opinião de quem o pudesse ler, pensava simplesmente e sem duvidar que «(…) mesmo abandonadas a si próprias, as pessoas vão-se convertendo e tornam-se razoáveis. É escusado eu lutar.» E foi. Ao ponto de se produzirem cópias pirata dos seus romances em países onde a censura não os permitia.
Miller estava mais do que certo quando, em 1940, escrevia à sua amiga «(…) a minha estrela, estou convencido, vai brilhar, apesar de todos os sinais em contrário. Nada pode impedir o avanço em frente. É por isso que estou confiante. sei que o destino fará o resto.»
Post Scriptum – Convém explicar que refiro o meu ato de sublinhar como criminoso, porque tenho em mãos um livro da biblioteca municipal… Usei grafite, estou a pensar apagar todos os traços e impressões que fui deixando à medida que fui percorrendo as páginas. Ou então não. Posso sempre deixar que a minha opinião influencie o próximo leitor… Logo se vê!
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